11.9.13

O HISTÓRICO DOCUMENTÁRIO DO ENCONTRO ENTRE ALLENDE E FIDEL

postagem original da Revista mexicana PROCESO
Fidel e Allende.  Diálogos.  Foto: AP
Fidel e Allende. . Diálogos 
Foto: AP
O cineasta chileno Alvaro Covacevich filmou em novembro de 1971 um diálogo entre a Salvador Allende e Fidel Castro, durante a visita que este efetuou a Santiago. O filme, apesar de ter sido lançado em Paris, teve muito pouca cobertura. Os presidentes do Chile e Cuba discutiram vários temas, incluindo a ameaça que pairava sobre o regime da Unidade Popular, ameaçada pela oligarquia local e pelos Estados Unidos. Allende, enfático, disse: "As pessoas que estão no governo, se eles conseguirem eles não vão conseguir, derrubar este governo, Chile cairia no caos, a violência e o conflito fratricida." Aqui, alguns fragmentos dessa conversa memorável intitulado American Dialogue.
Em 10 de novembro de 1971 o primeiro-ministro cubano Fidel Castro Ruz foi a Santiago para uma visita ao Dr. Salvador Allende, presidente democraticamente eleito do Chile. A viagem, inicialmente prevista para 10  dias, acabou estendendo-se para três semanas.
O cineasta Alvaro J. Covacevich reuniu os dois líderes e filmou a conversa, criando o documentário intitulado "O diálogo americano".
Estréia mundial em Paris em abril de 1972 que "o testemunho da luta para o processo chileno" foi apresentado pelo poeta Pablo Neruda e o mímico francês Marcel Marceau "como a ideologia histórica do governo da Unidade Popular. "Naquele ano, os críticos chilenos deram o prêmio de Melhor Filme, e também recebeu o Grande Prêmio Especial no Festival Internacional de Yoshiart, na União Soviética.
Nathaniel Davis, embaixador dos EUA Richard Nixon servindo naqueles dias, descreveu a visita como "uma demonstração extraordinária de turismo high-end, mal disfarçado intrusivo ... um circo."
***
Presidente Allende, é falado não só no Chile, mas em todo o mundo, de "via chilena". Como você definiria esse processo político que tem sido chamado de "via chilena"?
Allende: Na verdade, o nome da rua Chile poderia dizer que é quase um exagero. Mas eu acho que mais do que tudo tende a dignificar algo que você concorda com a nossa realidade, a nossa história ea nossa tradição. Povos que lutam têm, é claro, que se adaptam às suas táticas realidade e estratégia deve levar à sua transformação.
"O Chile, por sua natureza, sua história, é um país onde as instituições burguesas totalmente trabalhado e onde as pessoas dentro desta legalidade burguesa, sacrifício vem avançando e obtendo conquistas. Ele foi concientizándose, percebendo que não está dentro dos regimes capitalistas reformistas ou onde Chile vai atingir o tamanho de independência econômica do seu próprio país e capaz de atingir níveis mais elevados de vida e existência.Considere, então, que o Chile tem condições diferentes para outros países ... o Congresso chileno tem 161 anos de operação ininterrupta.
(Imagem de Pinochet aparece em preto e branco)
"Eu quero ver o que as forças armadas chilenas são as forças armadas profissionais, que ao longo de sua história tem sido deixado de fora da acção política completamente. Finalmente e mais importante, a classe trabalhadora tem estado ativamente envolvido diretamente na formação da consciência e das lutas populares. Nós dissemos que a revolução chilena é o pluralismo, a democracia ea liberdade. Cada um desses aspectos teria que aprofundá-la, você entende (diz Fidel) ... No entanto, o fator-chave (levanta a mão) é e sempre será, a classe trabalhadora e sua unidade. (...)
"Obstáculos, nasceu? Quem? Primeiro, uma oligarquia com experiência suficiente, inteligente, muito bem defender os seus interesses e tem o apoio do imperialismo, dentro de um quadro institucional onde o Congresso tem peso e autoridade, onde o governo não tem maioria. A partir daí, então você está dificuldades muito graves. Eles fazem o processo revolucionário chileno no âmbito desta lei são a cada dia ea cada momento os obstáculos ao progresso ...
"As dificuldades, no nosso caso, está relacionado com o que? Com a liberdade de imprensa, que é muito mais do que uma imprensa livre, é uma libertinagem da imprensa. Deforma, mentiras, calúnias, distorcidas. Os meios de comunicação disponíveis (a oligarquia) são poderosos; jornalistas ligados aos interesses nacionais e estrangeiros, e não só reconhecer, mas deformado, mais uma vez, as nossas iniciativas ... "
Castro: estas dificuldades são formidáveis ​​...
Allende: E é avançado, eu disse cobre é nosso é nosso ferro, salitre é a nossa, o aço é nosso. Ou seja, recursos básicos, temos conquistado. (...) Olha, Fidel, lá (em Cuba) também controlava o imperialismo terra ...
Castro -. Cobre a nossa é de cana. E a cana é cultivada nas melhores terras eram da United Fruit Company e inúmeras outras empresas norte-americanas, para que a nossa Lei de Reforma Agrária nos faz imediatamente bater contra os interesses imperialistas. (...)
-Após a Presidente, com a visita do primeiro-ministro Fidel Castro, tem havido um aumento na adverso aos seus setores do governo ...
Castro: (interrompe, irônica) tão bem Olha como chamam, os setores adversos!Imprensa é que você está falando? (Allende risos).
-É a imprensa objetivo, comandante, você quer fazer uma pergunta ...
Castro: E você acha que se destina a chamar a finesse de modo antitético a este processo?
"É por isso que eu só queria chegar à pergunta, o que você acha, o presidente, que ocorreria se a contra-revolução no Chile chegando?
Allende: Primeiro, eu acho que é interessante notar como você disse, Augusto Olivares, que se intensificou o processo, com a presença de Fidel. É lógico.
Castro: Então eu tenho que me culpar, certo?
Allende: Não. Mas você sabe o que significa a presença de Cuba e Fidel Castro no Chile. Eles estão conscientes de que é o sangue do processo revolucionário latino-americano vida. (...) Os revolucionários nunca geraram violência. Eles foram os setores e grupos atingidos pela revolução que geram a violência contra a revolução. (...)
"Bem, mas voltando para retomar a curiosidade de Augusto Olivares, mesmo que sempre tivemos em mente que o contador pode subir. E na frente dele, qual é a resposta? A resposta do povo organizado, disciplinado, Unidade Popular, a lealdade das forças armadas e das forças policiais sentido respeitoso tradicional usando a lei. Somos conscientes também de que o processo chileno é irreversível, eu insisto ... A aldeia está no governo, se eles conseguem eles não vão conseguir, derrubar este governo, Chile cairia no caos, a violência, ea fratricídio.
Castro: E o fascismo.
Allende: Ah, é claro! Imperialismo que está por trás e está por trás de todos os processos para quebrar a revolução e as mudanças significam derrota no Chile não será capaz de desembarcar. No Chile não vai intervir fisicamente, mas procurar outras maneiras ...
"Eu sou um lutador de toda a minha vida eu dediquei o meu esforço e minha capacidade de tornar possível o caminho para o socialismo, e cumprir o mandato que o povo me deu. Eu vou cumpri-lo implacavelmente. Vai cumprir o programa que nós prometemos para a consciência política do Chile. E para aqueles que sempre desencadeou a violência social, se a violência política desencadeada, se o fascismo pretende utilizar os meios de comunicação que varreram sempre aqueles que procuravam fazer uma revolução, você vai encontrar a resposta e minha decisão nossa implacável.
"Eu vou terminar quando o presidente cumprir o meu mandato (levante a mão, fazer um punho). Eles vão ter que me atirar para a morte, como eu disse ontem, parar de agir! Eu não defendo uma causa pessoal, defender o povo do Chile em seu anseio apenas para fazer as transformações que lhes permitam viver com dignidade, com uma sensação de distinta nacional e fazer do Chile um país independente do seu próprio destino. "
Castro: Eu admiro que a declaração de vocês, realmente parabéns e tenho certeza que vai ser uma bandeira para os povos, porque onde os líderes estão dispostos a morrer, as pessoas estão prontas para morrer. E dispostos a fazer o que for preciso. E isso tem sido um fator essencial em qualquer processo político revolucionário ...
Allende: Não há outra possibilidade. Também quero fazê-los compreender que este não é o julgamento de um homem, este é um povo consciente são líderes que sabem como continuar o caminho em caso de algo acontecer. Temos nós a presença de trabalhadores as principais empresas que atuam nos ministérios ... Central dos Trabalhadores é um pivô na frente do partido, a Unidade Popular no processo e, portanto, não é uma base de apoio que é pessoas. E que você sabe perfeitamente bem que ele é invencível. (...)
"Agora não é o momento de genocídio que o mundo rejeita. E a consciência do povo subirá a qualquer ameaça ".
Castro: Nós podemos levantar 600 mil homens em armas em questão de horas. (...)
- E você, presidente, esta duas pessoas que são processo revolucionário antes de a foto de uma América Latina explorada?
Allende: Cuba e Chile são a vanguarda de um processo de se juntar ao resto da América Latina e eu diria que mais do que isso, o resto dos povos explorados do mundo. Mas a América Latina não pode permanecer apenas o continente da esperança.
"Você tem que imaginar o que o gap e as diferenças entre nossos países economicamente dependentes, passando por política, dos países capitalistas industriais dos países socialistas. Na América Latina não pode continuar a existir brutal diferença proprietário de uma minoria de poder e riqueza, e as grandes massas, independentemente da cultura, saúde, moradia, alimentação, descanso, lazer ... America América tem a oportunidade de estar presente no momento em que o mundo rangidos. Flexões economicamente, moralmente, politicamente.
"Por isso, em seguida, as reservas deste continente será expressa quando as pessoas atingem as possibilidades de intervir, quando as pessoas vêm para o governo, quando arrasou as velhas oligarquias, cúmplices do imperialismo e quando, sem dúvida, tem uma voz da América América, vila continental, conforme indicaram os heróis da nossa independência ...
"Povos explorados do mundo estão conscientes do seu direito à vida e, portanto, o confronto está além da nossa fronteira e vai no sentido universal.Mas a América Latina, um dia, voz pertence a um povo, até hoje apresentada, para ser a voz de um continente livre da manhã. "

O dia final de Salvador Allende


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Maurício Brum
via SUL21
No início da manhã de 11 de setembro de 1973, Salvador Allende ainda acreditava que o golpe de Estado em andamento poderia ser contornado. Não era a primeira vez que um grupo de militares se insurgia contra o governo. Agora, o levante havia começado pela Armada – e restava a esperança de que a revolta fosse reduzida a alguns navios no porto de Valparaíso. Allende confiava que Augusto Pinochet permaneceria tão leal quanto fora Carlos Prats, seu antecessor no comando do Exército. Acreditava que o golpe seria vencido ou, caso viesse mesmo, que não teria o aval de Pinochet. Mas seguia sem conseguir contato para se comunicar com o general.
– Pobre Augusto, deve estar preso – comentou o presidente com alguns companheiros próximos.
Naquela altura, Allende já se localizava no palácio de La Moneda. Havia sido acordado pouco depois das seis da manhã, por um telefonema inquietante informando a situação em Valparaíso: a cidade fora sitiada e jazia na mira de canhões dos navios de guerra do próprio país. O presidente puxou o telefone para tomar a posição do comandante da Marinha, Raúl Montero, mas não obteve resposta. Depois, tentou chamar Pinochet, que também não atendeu. O único a responder foi o general golpista Herman Brady, com a promessa jamais cumprida de enviar soldados para combater o movimento no litoral.
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Enquanto isso, o almirante Montero era mantido em prisão domiciliar por seus subordinados, agora às ordens de José Toribio Merino, que se autodenominou chefe da Armada. Já Pinochet estava encabeçando o golpe, embora o presidente ainda não soubesse. Por volta das 7:35 da manhã, enquanto Allende chegava a La Moneda, o comandante do Exército também desembarcava em sua base de combate naquela manhã: o quartel de telecomunicações de Peñalolén, na zona leste de Santiago, de onde passaria as instruções decisivas para a derrocada do governo constitucional.
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Ainda sem saber a dimensão do putsch, Salvador Allende entrou ao vivo na frequência da Rádio Corporación duas vezes antes de os militares lerem seu primeiro comunicado do dia. Em suas incursões, o presidente reiterou que “até o momento, não houve nenhum movimento anormal de tropas em Santiago”, e manifestou fé na existência de regimentos leais que não se somariam à intentona. Mas suas esperanças se esvaíram pouco depois disso, às oito e meia, quando o tenente-coronel Roberto Guillard leu a carta da Junta Militar numa cadeia de rádios de oposição. Sua voz vinha desde o quinto andar do Ministério de Defesa, taxativa:
Santiago, 11 de setembro de 1973.
Tendo presente:
Primeiro: a gravíssima crise econômica, social e moral que está destruindo o país;
Segundo: a incapacidade do governo para adotar as medidas que permitam deter o processo e desenvolvimento do caso;
Terceiro: o constante incremento dos grupos paramilitares, organizados e treinados pelos partidos políticos da Unidade Popular que levarão o Chile a uma inevitável guerra civil, as Forças Armadas e Carabineros do Chile declaram:
Primeiro: que o senhor presidente da república deve proceder a entrega imediata de seu alto cargo às Forças Armadas e Carabineros do Chile;
Segundo: que as Forças Armadas e o corpo de Carabineros do Chile estão unidos para iniciar a histórica e responsável missão de lutar pela liberação da Pátria do jugo marxista, e a restauração da ordem e da institucionalidade;
Terceiro: os trabalhadores do Chile podem ter a segurança de que as conquistas econômicas e sociais que alcançaram até hoje não sofrerão modificações no fundamental;
Quarto: a imprensa, rádios e canais de televisão favoráveis à Unidade Popular devem suspender suas atividades informativas a partir deste instante. Do contrário receberão castigo aéreo e terrestre.
Quinto: o povo de Santiago deve permanecer em suas casas a fim de evitar vítimas inocentes.
Entre os comandantes – verdadeiros ou autodenominados – que assinavam o documento, estava o nome de Augusto Pinochet. Sua presença na lista confirmava a adesão do Exército ao golpe – e a impossibilidade de o governo superá-lo.
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O plebiscito que não houve
O golpe aconteceu numa terça-feira. O final de semana anterior havia sido marcado por uma série de reuniões de Allende com lideranças políticas e militares, discutindo as alternativas para o futuro imediato do país. Os problemas do governo iam além da crise econômica impulsionada por seus próprios erros estratégicos e pelos boicotes norte-americanos. Também estavam presentes o terrorismo da ultradireita, as greves dos sindicatos de oposição, em especial o dos caminhoneiros, o desabastecimento do comércio e a inflação perene. As Forças Armadas vacilavam em suas convicções democráticas e os partidos de oposição – e boa parte da sociedade – já apoiavam uma intervenção militar, acreditando um retorno rápido à normalidade.
Dentro da Unidade Popular, duas teses se confrontavam para decidir a estratégia a seguir. Um lado, encabeçado pelos socialistas, desejava acelerar as mudanças mesmo que à revelia da legalidade, impondo antes de negociar. A outra corrente, defendida pelos comunistas e por Allende, queria chamar ao diálogo com os adversários, mesmo que isso arriscasse ceder em parte das mudanças levadas a cabo pelo governo nos últimos três anos. Depois de avançar rápido demais e ver a situação se tornar ingovernável, a ala moderada da UP se esforçou para buscar uma saída e evitar mais derramamento de sangue. Sentindo-se encurralado, o presidente idealizou uma alternativa drástica: um grande plebiscito nacional pela continuidade ou não de sua administração.
Parecia-lhe a maneira mais honrosa de deixar o cargo sem correr o risco de jogar o país numa quebra institucional. Salvador Allende sabia que seria derrotado. Desde sua vitória, em setembro de 1970, a UP só teve a maioria absoluta do eleitorado uma vez – em março de 1971, e mesmo assim somando as cidades de todo o país nos pleitos municipais, com uma margem estreitíssima. Aquele triunfo aproveitou o sucesso econômico dos meses iniciais do governo, mas não correspondia ao cenário real e dividido da política chilena. Allende mesmo fora eleito com apenas 36,6% dos votos, numa disputa rachada entre três nomes. Ainda assim, segundo seus assessores mais próximos, o presidente estava disposto a renunciar tão logo o plebiscito o derrotasse.
Os chilenos, porém, não saberiam de suas reais intenções até a década de 90: nunca houve tempo de convocar a votação pretendida por Allende. No domingo, 9 de setembro de 1973, o mandatário havia convocado dois generais para uma reunião decisiva em que comentou precisamente seu projeto de colocar nas mãos da cidadania os rumos do poder. Naquela manhã, Augusto Pinochet e Herman Brady – o homem que atenderia o telefonema presidencial no dia 11 – apresentaram-se no escritório do mandatário. Sem desconfiar que estava diante de dois dos principais conspiradores a favor do golpe, Allende confidenciou-lhes a intenção de chamar o povo às urnas. Surpreso, Pinochet afirmou:
– Isso muda toda a situação, presidente. Vai ser possível resolver o conflito com o Parlamento e isso aliviará a tensão.
O que aquela descoberta realmente mudou foi a data do golpe. Fazendo um eterno jogo duplo para se posicionar em público sempre ao lado do mais forte, Pinochet já estava convencido pela causa golpista, e concluiu que a sublevação precisaria ocorrer antes do discurso presidencial. Uma intervenção dos fardados perderia muito de seu apoio caso a população soubesse da proposta de uma saída democrática para o impasse político. O levante estava previsto para antes das Festas Pátrias de 18 e 19 de setembro, para evitar uma nova parada militar diante do presidente que se queria derrubar. Mas a insurreição provavelmente só aconteceria por volta do dia 14, quando ocorriam os ensaios para o desfile e um deslocamento de tropas até Santiago seria menos suspeito.
Municiado pelas novas informações, Pinochet se reuniu naquela mesma noite do dia 9 com Merino e Gustavo Leigh, comandante da Aeronáutica. Foi durante a festa de treze anos de sua filha, Jacqueline Pinochet, que o general e os demais conjurados chegaram ao acordo de antecipar o “Dia D” para às seis da manhã de 11 de setembro – cinco horas antes do momento em que Allende tomaria os microfones para anunciar seu plebiscito.
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Santiago como um grande quartel
Se aquele fosse um dia comum e a agenda do presidente se mantivesse inalterada, a manhã do 11 marcaria a abertura da exposição “Por la vida siempre”, na Universidade Técnica do Estado (UTE). Até o final do mês, em todos os polos da instituição pelo país, estavam previstas quinhentas exposições mais ou menos simultâneas, expondo os horrores de uma guerra civil – que se temia para o Chile naquele contexto de divisão. As “jornadas antifascistas”, como chegaram a ser chamadas, seriam inauguradas por Salvador Allende no campus da UTE de Santiago, no mesmo ato em que pretendia anunciar oficialmente a realização do plebiscito.
No entanto, desde a véspera aquela programação pouco a pouco ganhou contornos de hipótese improvável. O presidente passou a noite de 10 de setembro reunido em sua residência oficial com vários assessores, planejando o dia seguinte. Perto da meia-noite, a conversa foi interrompida por um telefonema com o aviso: agricultores residentes na beira da rodovia tinham testemunhado o deslocamento de vários caminhões militares, saídos das cidades de Los Andes e San Felipe com direção à capital. Apesar do movimento suspeito, Allende não ficou atarantado:
– Se eu fosse acreditar em todos os rumores que ouço, ficaria louco – disse aos colegas.
Quando o mandatário se deitou para uma breve noite de sono antes do dia agitado, já havia comprado a versão do Exército: os soldados enviados para Santiago ajudariam a reforçar a segurança da cidade na manhã seguinte, quando poderia haver protestos no centro. Em meio a tantos acontecimentos, o 11 de setembro previa um importante evento a mais: a Justiça realizaria a sessão em que suspenderia o foro privilegiado do senador Carlos Altamirano e do deputado Guillermo Garratón, membros da base aliada de Allende que haviam acolhido as denúncias de um grupo de marinheiros, os quais garantiam ter ouvido seus superiores falando de uma trama golpista. A Armada, evidentemente, negava tudo – e pretendia processar os políticos.
Nem Altamirano nem Garretón chegaram a ter sua imunidade parlamentar formalmente cancelada porque, no dia 11, o próprio conceito de parlamentar – e de imune – se tornou alienígena. Os magistrados não puderam se reunir para julgar a causa; os fatos atropelaram o processo e confirmaram que a Marinha estava mesmo planejando o golpe denunciado por seus recrutas e, principalmente, os mandatos dos dois políticos – e de todo o Congresso – logo seriam anulados pelo novo regime. O Parlamento chileno foi dissolvido por um decreto autoritário da Junta Militar e permaneceu fechado até 1990, na volta à democracia.
Allende começou a tomar conhecimento de tudo o que estava passando no país graças àquele telefonema do início da manhã, mas antes disso as tropas já estavam dando os primeiros passos. No campus da UTE, onde deveria acontecer o ato presidencial, uma patrulha militar invadiu a rádio universitária e destruiu suas instalações, impedindo-a de funcionar. Este seria o primeiro atentado contra uma emissora favorável ao governo: ao longo da manhã do golpe, as poucas rádios que ainda colocavam os pronunciamentos de Allende no ar foram silenciadas rapidamente, com suas torres bombardeadas pelos aviões militares.
O presidente começou o dia falando em três rádios principais – a Corporación, a Portales e a Magallanes – e, na altura de seu último discurso, só uma delas ainda estaria operando. As demais emissoras do país ainda no ar ficaram tocando intermináveis marchas militares, interrompidas apenas pelos decretos emitidos ordinariamente pela Junta: ameaças de fuzilar no ato quem tentasse resistir ao golpe, recomendações para que o povo não saísse às ruas, listas de nomes de “extremistas” que deviam se entregar, ultimatos ao presidente e aos companheiros que insistiam em resistir no palácio.
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Eu não vou renunciar”
A resistência de La Moneda durou a manhã inteira. No início do dia, o prédio ainda era guarnecido por um grupo de Carabineros, com a presença do próprio diretor da corporação, o general José Sepúlveda. No entanto, essa presença não durou muito: os soldados desertaram quando o primeiro decreto da Junta veio ao ar e o desconhecido César Mendoza assinou como comandante da instituição. A exemplo do que Merino fizera na Armada, Mendoza também deu um golpe interno nos Carabineros: no seu caso, passou a perna em seis generais mais antigos e virou diretor “de fato” ao assumir o controle da central de telecomunicações da polícia, de onde pôde dar ordens ao país inteiro.
Sem suporte militar de qualquer tipo, os defensores do palácio resistiram usando as armas abandonadas pelos próprios Carabineros, além do equipamento mantido pela escolta presidencial. Tratava-se, evidentemente, de uma resistência simbólica: menos de uma centena de homens parcamente armados contra todo o aparato militar do Chile. Com o tempo correndo perigosamente contra, Allende entrou em contato com a última emissora de rádio aliada ainda no ar. Às 9:10, os chilenos sintonizados na Rádio Magallanes puderam ouvir, entre nuvens de estática, o último discurso do presidente:
Seguramente, esta será a última oportunidade em que poderei me dirigir a vocês. A Força Aérea bombardeou as antenas da Rádio Portales e da Rádio Corporación. Minhas palavras não têm amargura, mas decepção. Que sejam elas um castigo moral para aqueles que traíram o juramento que fizeram: soldados do Chile, comandantes-em-chefe titulares, o almirante Merino, que se autodesignou comandante da Armada, mais o senhor Mendoza, general rasteiro que ainda ontem manifestava sua fidelidade e lealdade ao governo, e que também se autodenominou Diretor Geral de Carabineros.
Diante desses fatos, só me cabe dizer aos trabalhadores: eu não vou renunciar.
Colocado em um transite histórico, pagarei com minha vida a lealdade do povo. E lhes digo que tenho a certeza de que a semente que entregamos à consciência digna de milhares e milhares de chilenos não poderá ser segada definitivamente. Têm a força, poderão nos avassalar, mas não se detêm os processos sociais, nem com o crime, nem com a força.
A história é nossa e a fazem os povos.
Trabalhadores da minha Pátria: quero agradecer-lhes a lealdade que sempre tiveram, a confiança que depositaram em um homem que apenas foi intérprete de grandes desejos de justiça. Que empenhou sua palavra em que respeitaria a Constituição e a lei, e assim o fez. Neste momento definitivo, o último em que eu poderei me dirigir a vocês, quero que aproveitem a lição: o capital estrangeiro, o imperialismo, unidos à reação, criaram o clima para que as Forças Armadas rompessem sua tradição. [...]
Seguramente a Rádio Magallanes será calada e o metal tranquilo de minha voz não chegará vocês. Não importa. Seguirão me ouvindo. Sempre estarei junto a vocês. Pelo menos minha lembrança será a de um homem digno que foi leal com a Pátria.
O povo deve defender-se, mas não se sacrificar. O povo não deve se deixar arrasar nem se crivar de balas, mas tampouco deve se humilhar.
Trabalhadores de minha Pátria: tenho fé no Chile e em seu destino. Superarão outros homens este momento gris e amargo em que a traição pretende se impor. Sigam vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passe o homem livre para construir uma sociedade melhor.
Viva o Chile! Viva o povo! Vivam os trabalhadores!
Estas são minhas últimas palavras, e tenho a certeza de que meu sacrifício não será em vão. Tenho a certeza de que, pelo menos, será uma lição moral que castigará a felonia, a covardia e a tradição.
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O cerco final a La Moneda
Após a despedida de Allende, La Moneda se viu rodeada por tanques. No restante da manhã, a Junta reiterou suas ofertas para que o presidente renunciasse ao cargo para ter sua integridade física mantida. Os militares prometiam deixar um avião à disposição para levá-lo a qualquer parte em que desejasse se asilar. Salvador Allende, porém, não aceitou. Em 1985, vazaram gravações das conversas internas dos comandantes, em que Pinochet diz textualmente:
– Mantém-se o oferecimento de retirá-lo do país… e o avião cai, viejo, durante o voo – ao fundo, os colegas do general gargalhavam.
O bombardeio aéreo do palácio atrasou por quase uma hora. Prometido para as onze da manhã, teve seu início apenas às 11:52, quando foi disparado o primeiro dos 79 mísseis a saírem dos caças Hawker Hunter. Antes disso, a residência presidencial, localizada em outro ponto de Santiago, também havia sofrido ataque aéreo. Lá estava a primeira-dama, Hortensia Bussi, que conseguiu fugir escondida num automóvel dirigido por um guarda-costas.
As bombas caíram sobre La Moneda por cerca de 25 minutos. Depois, aproveitando-se dos rombos abertos no palácio, helicópteros se aproximaram e lançaram granadas de gás lacrimogêneo. Apesar de toda a violência do ataque, o 11 de setembro deixaria somente duas vítimas na sede do governo chileno: dois suicídios. O primeiro foi o jornalista Augusto Olivares, diretor da Televisão Nacional, enquanto o bombardeio acontecia. O segundo, apesar das controvérsias que essa afirmação gerou nessas quatro décadas, foi Salvador Allende.
Por muitos anos a versão do suicídio do presidente foi combatida, inclusive por outros defensores do palácio, que garantiam ter presenciado uma troca de tiros. Nos tempos de resistência à ditadura, parecia mais útil a imagem do homem que morrera lutando do que o suicídio honroso de alguém que se recusou a cair nas mãos dos inimigos. Fidel Castro endossou essa versão num discurso que deu em Havana no fim daquele setembro sombrio, e mais tarde seria a vez de Gabriel García Márquez dar ainda mais força à lenda, com um texto baseado em relatos de testemunhas em que confirmava a ocorrência de um tiroteio entre o presidente e os homens do general Javier Palacios – que comandou a invasão ao prédio.
A cada aniversário do golpe, novos livros tentando comprovar “a verdadeira história” por trás das horas finais de Salvador Allende reconstroem as versões, e ainda hoje são escritos textos reforçando a tese do tiroteio. No entanto, na obra mais exaustiva a respeito do assunto – El último día de Salvador Allende, de 2008 –, o médico Óscar Soto confirma de forma convicta o suicídio. Tal sustentação também veio de todas as autópsias encomendadas periodicamente pelos governos chilenos após a volta à democracia.
Cardiologista do presidente, Soto esteve no palácio naquele dia e participou de reconstituições com outros colegas da defesa. De acordo com seu relato, por volta da uma e meia da tarde e já sem chances de resistir, Allende havia pedido que os colegas se rendessem, saindo pela porta lateral do prédio, que dá na rua Morandé. Anunciou que seria o último da fila, mas aproveitou a confusão e se retirou no Salão da Independência, onde tirou a própria vida com o AK-47 que lhe havia sido presenteado por Fidel, anos antes. O tiro foi ouvido das escadarias, seguido pelo grito enlouquecido de Enrique Huerta, responsável pela manutenção do palácio:
– Allende morreu! Viva o Chile!
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Longe do palácio, as outras vítimas de La Moneda
Huerta chegou a recolher a arma do tapete para acompanhar a imolação do mandatário, mas foi convencido de que seu sacrifício seria inútil pelo médico Héctor Pincheira. Os dois decidiram respeitar a última ordem de Allende e saíram do prédio pela porta lateral, onde – como todos os demais – foram imediatamente obrigados a se deitar de bruços no chão. A imagem ficou famosa: correram o mundo os registros dos defensores de La Moneda jogados na rua diante das lagartas ameaçadoras de um tanque de guerra.
Ninguém morreu no asfalto de Morandé, mas nos dias seguintes muitos outros nomes se somaram à listagem de vítimas do palácio, que inicialmente contava apenas com Augusto Olivares e Salvador Allende. Dos 56 prisioneiros capturados com vida, 24 foram vítimas de execuções sumárias ou se tornariam desaparecidos políticos, inclusive Héctor Pincheira e Enrique Huerta. A repressão logo se abateu por todo o país, acompanhada pela imposição de um toque de recolher que vigorou até o dia 13. O país já era outro quando se pôde voltar às ruas. Sua posição no cenário político internacional, também: alguns rapidamente criticaram a brutalidade do novo regime, outros silenciaram. A grande maioria, mais cedo ou mais tarde, lembrou dos acordos comerciais para ignorar as violações de direitos humanos.
Mas houve uma nação que se antecipou às demais. Alguns anos mais tarde, Augusto Pinochet lançou um livro de memórias chamado El día decisivo, sobre os preparativos do golpe. Montado como se fosse uma entrevista, com perguntas e respostas, o volume inclui a seguinte interrogação:
Pergunta: Nesse dia [11 de setembro], algum país reconheceu o novo governo do Chile?
Pinochet: Sim. Nessa tarde eu me encontrava no escritório do Diretor da Escola Militar, quando chegou o Embaixador do Brasil no Chile, senhor Câmara Canto, para dizer que seu país reconhecia o novo governo do Chile, nobre gesto desse país irmãos que os chilenos nunca esqueceremos.
O Brasil, que havia dado apoio de bastidores ao golpe, não sentiu qualquer constrangimento em assumir a trama nas horas seguintes à morte de Allende. O governo Médici seria o primeiro em todo o mundo a emprestar dinheiro para Pinochet começar a “reconstrução” do Chile, e logo autorizou o envio de medicamentos, alimentos e combustíveis para Santiago. Também mandou um destacamento de “especialistas em interrogatórios”, com a missão de ensinar aos militares transandinos as técnicas de tortura mais eficientes empregadas nos porões brasileiros. Era o início de uma frutífera relação entre as duas ditaduras.
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9.6.13

Alunos encontram fotos de suposto 'suicida' da ditadura no RS

Uma série de 13 fotografias pode revelar mais um crime ocorrido no período da ditadura militar brasileira (1964-1985). Imagens e documentos encontrados em 2011 no arquivo do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul por dois estagiários de história podem recontar o que os registros oficiais apontam como suicídio.


 
Silva foi encontrado morto em cela do Presídio Central, em Porto Alegre; tinha 26 anos (Foto: Divulgação TJ-RS)
Em 22 de abril de 1970, o motorista de táxi e militante de esquerda Ângelo Cardoso da Silva foi encontrado morto, aos 26 anos de idade, em uma cela do Presídio Central, em Porto Alegre.

O achado é dos alunos da Faculdade de História da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) David dos Santos e Graziane Righi. As fotos do corpo de Silva de joelhos, com um lençol envolto no pescoço e amarrado a uma janela basculante a 1,30 metro de altura, chamaram a atenção dos dois durante um trabalho de garimpo de documentos.

Guiados por uma lista de indenizados políticos, os jovens pesquisadores encontraram o processo de Silva. "Estava dentro de uma caixa com vários inquéritos de suicídio. Quando vimos as fotos, ficou evidente para nós que não parecia se tratar de suicídio", disse a estudante.

As fotos viraram objeto de pesquisa e artigo na universidade. Os autos de necropsia feitos na época foram entregues ao legista Helio Antonio de Castro, que, reavaliando os exames cadavéricos feitos em 1970, chegou à conclusão de que há sinais evidentes no corpo de Silva que extinguem a possibilidade de suicídio.

Entre eles estão a ausência de um nó de amarra no lençol que marcasse seu pescoço; a improvável cena de enforcamento, já que o preso estava a uma baixa altura com os joelhos dobrados; e a impossibilidade de uma esganadura realizada pelo próprio preso.

Segundo Castro, as evidências levam a crer que duas pessoas torceram o lençol no pesçoco de Silva, em uma espécie de garrote, o asfixiando. Outras questões presentes no inquérito que também levantam dúvidas são os depoimentos das duas testemunhas do caso, dois agentes penitenciários que encontraram o corpo do taxista. Seus depoimentos foram colhidos três anos depois do episódio.

Em março deste ano, os arquivos de Silva foram apresentados à CNV (Comissão Nacional da Verdade), que deve iniciar uma investigação própria. Para Graziane, a importância de levantar a verdade deste caso tem a ver com a dúvida que paira em outras dezenas de mortes classifidas como suicídio.

"É importante que haja uma retratação pública e que se investiguem os outros 44 casos de suicídio entre os mortos e desaparecidos políticos em todo o país durante a ditadura militar no Brasil", diz a estudante.

Quem foi

Ângelo Cardoso da Silva nasceu em 27 de outubro de 1943, na cidade gaúcha de Santo Antônio da Patrulha. Com 24 anos, iniciou os estudos e ingressou no movimento de luta armada M3G (referência a Marx, Mao, Marighella e Guevara).

Motorista de táxi, auxiliou na fuga em ao menos quatro ações de "expropriação bancária" no Rio Grande do Sul. As suspeitas sobre sua morte já haviam sido levantadas por outros ex-presos políticos, mas só agora as fotos do corpo vieram à tona. Os pesquisadores encontraram apenas um irmão do taxista vivo, que autorizou a divulgação de seus documentos. 

Há na história dos chamados "anos de chumbo" ao menos outros quatro casos de supostos suicídios e que, com o passar dos anos, foram se revelando uma farsa. Os mais famosos e emblemáticos são o do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, e o do operário Manoel Fiel Filho, em 1976, ambos no Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna), em São Paulo. 

Fonte: Vermelho / UOL, Porto Alegre

7.6.13

Memórias da ditadura: ‘Servi de cobaia para uma aula de tortura’

POR: DULCE CHAVES PANDOLFI, via Sul21
Por acreditar que no Brasil de hoje a busca pelo “direito à verdade e à memória” é condição essencial para nos libertarmos de um passado que não podemos esquecer, aceitei o convite da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro para fazer hoje, aqui, esse depoimento.
Mesmo sem nenhum mandato, quero falar em nome dos presos, torturados, assassinados e desaparecidos pela ditadura militar que vigorou em nosso país entre 1964 e 1985.
Como historiadora, sei que a memória não diz respeito apenas ao passado. Ela é presente e é futuro. Os testemunhos que estão sendo dados à Comissão da Verdade, embora sobre o passado, dizem respeito ao presente e apontam para o futuro, por isto mesmo espero que ajudem a construir um Brasil mais justo e solidário.
Sei também que da memória – sempre seletiva – , fazem parte o silêncio e o esquecimento. Por isso, nessas minhas fortes lembranças, permeadas por ruídos, odores, cores e dores, estarão presentes ausências e esquecimentos.
2 – O Sentimento
Nascida e criada no Recife, fiz parte de uma geração que sonhou e lutou muito. Queríamos romper com as tradições, acabar com a miséria e com as injustiças sociais, reformar a universidade, derrubar a ditadura, enfim, queríamos transformar o Brasil e o mundo.
Em 1968, um ano marcado por muitas paixões e fortes embates políticos e ideológicos, eu, cursando o segundo ano de Ciências Sociais, fui eleita secretária geral do Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal de Pernambuco, DCE, entidade que congregava todos os estudantes daquela universidade.
Naquele ano o movimento estudantil explodiu por toda parte. No Brasil, depois da famosa Passeata dos Cem Mil, realizada aqui no Rio de Janeiro e que tentamos replicar nas diversas capitais do país, o ano terminou com a decretação do Ato Institucional nº 5.
A partir daí, as prisões, as mortes e as torturas, iniciadas em 1964, aumentaram. A radicalização do regime, para muitos de nós, justificava a continuidade da nossa luta.  Foi também em 1968 que ingressei em uma organização de esquerda armada, a Ação Libertadora Nacional, ALN.
3 – A Prisão
No início de 1970, perseguida pelos órgãos da repressão, fugi do Recife e vim para o Rio de Janeiro. Poucos meses depois, fui presa.
Na noite do dia 20 de agosto de 1970, no momento em que entrei no quartel da Polícia do Exército situado na Rua Barão de Mesquita, número 425, no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, ouvi uma frase que até hoje ecoa forte em meus ouvidos: “Aqui não existe Deus, nem Pátria, nem Família. Só existimos nós e você”.
Hoje, passados mais de 40 anos, penso no efeito que aquela frase produziu em mim. Com vinte e um anos de idade, cheia de certezas e transbordando de paixões, eu não queria morrer. Embora totalmente acuada e literalmente apavorada, aquela frase não deixava a menor dívida sobre algo que eu já sabia, mas que naquele momento ganhou força e concretude. Não havia comunicação ou negociação possível entre aqueles doismundos: o meu e o deles. 
4 –  Sob a guarda do Exército Brasileiro
Era naquele quartel que funcionava o DOI CODI. O prédio tinha dois andares. Diferentemente do que muitos dizem, aquele lugar não era um “porão da ditadura”, um local clandestino. Embora ali não existisse “nem Deus, nem pátria, nem família”, eu estava em uma dependência oficial do Exército Brasileiro. Uma instituição que funcionava a todo vapor, com todos os seus rituais, seus símbolos, seus hinos, sua rotina.  Ali fiquei mais de três meses.
Na andar térreo ficavam a sala de tortura, com as paredes pintadas de roxo e devidamente equipada; outras salas de interrogatório, com material de escritório e às vezes usadas também para torturar; e algumas celas mínimas, chamadas solitárias, imundas, onde não havia nem colchão. Nos intervalos das sessões de tortura, os presos eram jogados ali.
No segundo andar do prédio havia algumas celas pequenas e duas bem maiores, essas com banheiro e diversos beliches. Foi numa dessas celas que passei a maior parte do tempo.
Normalmente, os torturadores, embora quase todos militares, andavam à paisana. Os fardados cobriam com um esparadrapo o nome gravado em um dos bolsos do uniforme. Cabia aos cabos e soldados cuidar da infraestrutura.
Eram eles que fechavam e abriam as celas, nos levavam para os interrogatórios, ou melhor, para as sessões de tortura, faziam a ronda noturna, levavam as nossas refeições.
Ali não havia banho de sol, visita familiar, conversa com advogado. Nenhum contato com o mundo lá fora.  Naquela fase, éramos presos clandestinos. Só saíamos das celas para os interrogatórios, de olhos vendados, sempre com um capuz preto na cabeça.
Quase todos os que faziam o trabalho de infraestrutura incorporavam o ambiente da tortura. Mas havia algumas exceções. Um dos soldados, por exemplo, me deu um pedaço de papel e uma caneta para eu escrever uma carta para meus pais. E, de fato, a carta chegou ao destino.
5 – As Torturas
Durante os mais de três meses que fiquei no DOI CODI, fui submetida, em diversos momentos, a diversos tipos de tortura. Algumas mais simples, como socos e pontapés. Outras mais grotescas, como ter um jacaré andando sobre meu corpo nu.
Recebi muito choque elétrico e fiquei muito tempo pendurada no chamado “pau de arara”: os pés e os pulsos amarrados em uma barra de ferro e a barra de ferro colocada no alto, numa espécie de cavalete.
Um dos requintes era nos pendurar no pau de arara, jogar água gelada e ficar dando choque elétrico nas diversas partes do corpo molhado. O contato da água com o ferro potencializava a descarga elétrica.
Embora essa tenha sido a tortura mais frequente havia uma alternância de técnicas.  Uma delas, por exemplo, era o que eles chamavam de “afogamento”.
Amarrada numa cadeira, de olhos vendados, tentavam me sufocar com um pano ou algodão embebido em algo de cheiro muito forte, que parecia ser amônia.
De modo geral, para os presos, a barra mais pesada ocorria nas primeiras 24 horas após a prisão. Era a corrida contra o tempo: para eles e para nós.
Durante essas primeiras horas, duas eram as perguntas básicas: ponto e aparelho. Ponto era o local, na rua, onde os militantes se encontravam e aparelho era o local de moradia ou de reunião.
Não sei quanto tempo durou minha primeira sessão. Só sei que acabou quando eles atingiram o meu limite. Muito machucada, e sem conseguir me locomover, ouvi, ao longe, um bate boca entre os torturadores se eu deveria ou não ser levada para o Hospital Central do Exército.
6 – A Morte de Um Companheiro
Minha prisão, consequência de um contato familiar, teve muitas testemunhas. Ou seja, muitos familiares, que nada tinham a ver com a minha militância, foram presos e levados para o DOI CODI. Sobre essas prisões, não houve registro algum.
Quando eu passei a correr risco de vida, montaram uma pequena enfermaria em uma das celas do segundo andar. Ali fui medicada, ali fiquei tomando soro.
Meu corpo parecia um hematoma só. Por conta, sobretudo, da grande quantidade de choques elétricos, fiquei com o corpo parcialmente paralisado. Achava que tinha ficado paralítica. Aos poucos, fui melhorando.
Fiquei um bom tempo sem descer para a sala roxa. Mas, ouvir gritos dos outros companheiros presos e ficar na expectativa de voltar, a qualquer momento, para a sala roxa, era enlouquecedor.
Uma noite, que não sei precisar quando foi, fui levada para a sala roxa para ser acareada com um militante da ALN, Eduardo Leite, conhecido como Bacuri. Lembro até hoje dos seus olhos, da sua respiração ofegante e do seu caminhar muito lento, quase arrastado, como se tivesse perdido o controle das pernas.
Num tom sarcástico, o torturador dizia para nós dois, na presença de outros torturadores: “Viram o que fizeram com o rapaz? Essa turma do Cenimar é totalmente incompetente. Deixaram o rapaz nesse estado, não arrancaram nada dele e ainda prejudicaram nosso trabalho”. No dia 8 de dezembro daquele ano mataram o Bacuri.
7 -  “Ela ainda aguenta”
Durante o tempo que fiquei sozinha na tal cela grande do segundo andar, com muita dor, sem ter absolutamente nada para fazer, achava que ia enlouquecer. Para passar o tempo, inventei duas atividades: contar os ladrilhos do chão e fazer pequenas tranças com palhas retiradas dos colchões.
Foi nessa mesma cela que, naqueles primeiros dias, fui acolhida, durante alguns minutos, por Ana Burzitin, encarregada de dar meu primeiro banho.
Depois de algum tempo, chegaram ou passaram por lá Cecília Coimbra, que também me ajudava no banho, Margarida Solero, a canadense Tânia Chao, Maria do Carmo Menezes, Carmela Pezzutti, Vânia, Marcia e Josi. Todas igualmente torturadas. Juntas, totalmente apoiadas umas nas outras, chorávamos, cantávamos e rezávamos muito.
No dia 20 de outubro, dois meses depois da minha prisão e já dividindo a cela com outras presas, servi de cobaia para uma aula de tortura.
O professor, diante dos seus alunos, fazia demonstrações com o meu corpo. Era uma espécie de aula prática, com algumas dicas teóricas.  Enquanto eu levava choques elétricos, pendurada no tal do pau de arara, ouvi o professor dizer: “essa é a técnica mais eficaz”. Acho que o professor tinha razão.
Como comecei a passar mal, a aula foi interrompida e fui levada para a cela. Alguns minutos depois, vários oficiais entraram na cela e pediram para o médico medir minha pressão.
As meninas gritavam, imploravam, tentando, em vão, impedir que a aula continuasse. A resposta do médico Amilcar Lobo, diante dos torturadores e de todas nós, foi: “ela ainda aguenta”. E, de fato, a aula continuou.
A segunda parte da aula foi no pátio. O mesmo onde os soldados, diariamente, faziam juramento à bandeira, cantavam o Hino Nacional. Ali fiquei um bom tempo amarrada num poste, com o tal do capuz preto na cabeça. Fizeram um pouco de tudo.
No final, comunicaram que como eu era irrecuperável eles iriam me matar, que eu ia virar “presunto”’, termo usado pelo Esquadrão da Morte. Ali simularam meu fuzilamento.
Levantaram rapidamente o capuz, me mostraram um revolver, apenas com uma bala, e ficaram brincando de roleta russa. Imagino que os alunos se revezavam no manejo do revolver porque a “brincadeira” foi repetida várias vezes.
8 –  O Laudo do IML
No final de novembro fui transferida para o DOPS, na Rua da Relação, no centro do Rio de Janeiro. Ali, durante um mês, fiquei numa cela com a médica Germana Figueiredo. A ela, também, muito devo. Com o dobro da minha idade, cuidou de mim como uma mãe.
Foi durante minha permanência no DOPS que fui levada para o Instituto Médico Legal para fazer exame de corpo de delito. Achavam que eu seria uma das presas políticas trocadas pelo embaixador suíço, sequestrado no dia 8 de dezembro.
Uma das exigências da embaixada era que os prisioneiros que fossem trocados pelo embaixador tivessem um laudo médico oficial do Estado brasileiro sobre seu estado físico. E eu, quase quatro meses depois, ainda estava marcada pelas torturas. Essas marcas constam do laudo oficial do IML, que meu advogado, Heleno Fragoso, conseguiu anexar ao meu processo.
Mas, no final de dezembro, ao invés de sair rumo ao Chile, como os companheiros que foram trocados pelo embaixador suiço, fui transferida para o presídio Talavera Bruce, em Bangu, zona norte do Rio de Janeiro.
Depois de ter ficado ali quase seis meses, enfrentando uma barra bastante pesada, fui transferida para o presídio Bom Pastor, em Recife.
9 – Absolvição?
Ao todo fiquei presa um ano e quatro meses. Como tinha vários processos, mas nenhum julgamento concluído, saí da prisão no dia 14 de dezembro de 1971, com um recurso jurídico chamado “relaxamento de prisão preventiva”. Era uma espécie de “liberdade condicional”. Tinha várias restrições e não podia me ausentar do país.
Anos depois, a Justiça Militar me absolveu. Mas nenhuma absolvição pode apagar os métodos utilizados durante o tempo que estive presa sob a responsabilidade do Estado brasileiro.
10 – A Verdade
No momento em que estava escrevendo esse depoimento, me veio à cabeça um texto que li, também no famoso ano de 1968, no curso de literatura que fazia na Aliança Francesa de Recife. Esse texto, que muito me mobilizou, tem o título de J’Accuse, em português, Eu Acuso.
Em carta endereçada ao Presidente da República Francesa, escrita m 1898, o escritor francês Emile Zola fazia uma defesa pública de Alfred Dreyfus, preso e condenado à morte por conta de uma falsidade e de um grave erro judicial. Começando todas as frases da carta com a expressão ‘Eu Acuso’, aquele documento produziu um enorme impacto na sociedade francesa.
Obviamente, sem a pretensão literária de Zola, mas esperando que os trabalhos da Comissão da Verdade produzam também um forte impacto na sociedade brasileira, finalizo este depoimento fazendo uma espécie de plágio ao texto do famoso escritor francês.
Eu acuso todos os torturadores, civis e militares, inclusive aqueles que diziam e continuam dizendo que estavam apenas cumprindo ordens dos seus superiores.
Eu acuso os altos oficiais e comandantes do Exército Brasileiro que, em visitas oficiais ao DOI CODI, entravam nas nossas celas e faziam gracejos com as nossas torturas. Em uma dessas visitas, um desses oficiais mandou que seu acompanhante, um cão pastor, lambesse minhas feridas.
Eu acuso quem, durante a minha primeira sessão de tortura, me deu uma injeção na veia, dizendo ser o tal “soro da verdade”.
Eu acuso o major da Polícia Militar Riscala Corbaje, conhecido como doutor Nagib, que ao perceber que o tal soro da verdade não havia produzido o efeito esperado, me levou para uma pequena sala, me deitou no chão, subiu nas minhas costas, começou a pisotear e a me bater com um cassetete, dizendo, aos gritos, que ia me socar até a morte. Seu descontrole foi tamanho e seus gritos tão estridentes que os outros torturadores entraram na sala e o arrancaram de cima de mim.
Eu acuso o major do Exército João Câmara Gomes Carneiro, conhecido como Magafa, que em uma daquelas noites, dias depois de terem retirado o tal soro, deixou-me durante algumas horas em pé, com um capuz na cabeça e os fios amarrados nos meus dedos. De tempos em tempos ele cochichava nos meus ouvidos que eu tivesse “um pouco de paciência” porque ele estava muito ocupado, mas que “a sessão dos choques elétricos iria começar a qualquer momento”.  Para mim aquele foi um tempo quase infinito. A despeito de ser aquela uma noite muito fria, quando voltei para a cela, minha roupa estava totalmente encharcada, colada no corpo, de tanto que eu havia transpirado de medo.
Eu acuso o médico Amilcar Lobo que fez uso dos seus conhecimentos médicos para auxiliar no esquema da tortura. Um dia, diante do nosso clamor para que ele tentasse impedir que Maria do Carmo Menezes, grávida de cinco meses, continuasse sendo torturada, ele nos respondeu: “comunista não pode engravidar”.
Eu acuso o cabo Gil, um dos responsáveis pela infraestrutura do quartel da PE. Seu sadismo era sem fim. Lembro até hoje do barulho forte das chaves quando ele abria a porta da nossa cela com o capuz na mão. Propositalmente, ele demorava um tempo e, como se estivesse fazendo um sorteio, dizia: “acho que agora é sua vez”.  Descer as escadas de olhos vendados, guiadas por ele, era um horror. Sempre inventava mais um degrau ou colocava o pé para que nós tropeçássemos.
Eu acuso o agente da Polícia Federal Luiz Timóteo de Lima, conhecido como Padre, que me deu muito choque elétrico.
Eu acuso o coronel da reserva Paulo Malhães que em recente entrevista ao jornal O GLOBO, no dia 26 de junho de 2012, afirmou que em 1970 trouxe do rio Araguaia cinco jacarés e levou para o quartel da PE na rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro, para atemorizar os presos políticos.
Eu acuso todos os que assistiram e os que ministraram aulas de torturas usando a mim e aos outros presos.
Eu acuso a diretora do Presídio Talavera Bruce em Bangu, no Rio de Janeiro, que me deixou durante seis meses, sozinha, isolada, numa cela mínima, insalubre, chamada solitária. Em solitárias semelhantes estavam, naquele mesmo período, as presas políticas Estrela e Jessie Jane.
Eu acuso os ex-presidentes da República Humberto Castelo Branco, Costa e Silva, Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Batista Figueiredo. A despeito das divergências entre eles e das diferentes conjunturas em que chefiaram o país, todos, sem exceção, foram responsáveis e coniventes com a tortura.
Eu acuso, finalmente, o regime ditatorial implantado no Brasil em 1964, que fez da tortura uma política de Estado.
Depoimento à Comissão Nacional da Verdade de Dulce Chaves Pandolfi, graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, mestre em Ciência Política pelo IUPERJ e doutora em História pela Universidade Federal Fluminense. Lecionou Sociologia e Ciência Política no Conjunto Universitário Cândido Mendes e na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro. Desde 1978 é pesquisadora do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas. E de 2004 para cá, diretora do Instituto Brasileiro de Análises Econômicas e Sociais, Ibase.